Há um grupo de ferramentas que pode contribuir para um ambiente urbano mais otimizado. Entram aí sensores, redes de comunicação e sistemas de análise de dados. Contudo, é preciso mudança de cultura e visão de longo prazo.

Caso essa reportagem sobreviva à urgência e efemeridade de nossos tempos, e você esteja lendo essas palavras em algum momento no futuro, gostaria de deixar claro que essas linhas foram escritas em um período de aparente mudança social. Em meio a opiniões desencontradas que se proliferam nas redes sociais, fica praticamente impossível prever com exatidão até que ponto o que ocorre hoje será relevante ao longo do tempo. Ao que tudo indica, vivemos um momento histórico na democracia brasileira pós-2000.
Durante o mês de julho, milhares de brasileiros saíram às ruas para manifestarem sua insatisfação quanto a algumas condições sociais. A gota d´água que fez o copo transbordar foi o aumento no preço das passagens no transporte público. Algo ligeiramente irrelevante: 20 centavos (no caso de São Paulo). Contudo, o aumento soou extremamente abusivo se considerado o sistema extremamente lotado e pouco eficiente de ônibus, metrô e trem que atualmente atende a maior cidade do País.

Vale deixar claro que o transporte coletivo foi apenas um dos motes das manifestações dos dias subsequentes. Cidadãos empunhavam cartazes com pedidos diversos. Exigiam melhores escolas, hospitais, segurança e uma gestão pública, nas três esferas administrativas, eficiente ou apenas menos corrupta. O grito das ruas revelou um problema imenso que, em rápida análise, pede revisão dos modelos governamentais dos municípios, estados e federação.
Em meio a tudo isso, em uma quarta-feira, a equipe de CRN Brasil promoveria o IT Mídia Debate: Cidades do Futuro. Participaram da discussão, realizado na sede da empresa, Reinaldo Opice, CEO da Enterasys; Marcos de Carvalho, diretor de tecnologias e serviços do CPqD; Fabio Tagnin, diretor de pesquisa da Intel; e na plateia, Paul Markus, da Path. O que se via País a fora coincidiu perfeitamente com o que nos proporíamos a dialogar no auditório da empresa naquele 19 de junho. Afinal, faz algum tempo que empresas como Siemens, IBM, APC Schneider, Cisco, Enterasys, Intel, e outros representantes da indústria começaram a endereçar seu discurso para solução de problemas urbanos complexos. Mas, mesmo com todo avanço tecnológico, será que aplicação de TI e telecom pode contribuir de forma efetiva para melhorar o ambiente das cidades onde vivemos?

Urbanismo e TI
O Brasil passou por um processo de urbanização rápido. Peguemos o intervalo de tempo entre as duas Copas do Mundo de futebol que sediamos. Em 1950 cerca de 20% dos brasileiros vivia nas cidades. Hoje, esse percentual chega próximo de 85%. O crescimento ocorreu desordenado e desencadeou vários problemas.
Um ditado já batido no universo de TI diz que Deus criou o mundo em sete dias porque não precisava resolver o problema do legado. Cidades inteligentes, segundo os pesquisadores do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), são sobre a concepção da cidade, dos bairros e privilegiam a mobilidade urbana. A solução a ser comercializada é a arquitetura, o urbanismo, a engenharia; a tecnologia pode ser base e, algumas vezes, meio.
Para Praveen Subramani, do MIT Media Labs, o modelo de negócios das cidades inteligentes está em torno de serviços. Versa sobre aplicação de conceitos. Como automatizar a coleta de lixo, como gerar energia de forma eficiente e limpa, como otimizar o tráfego de informações, como trabalhar com a população de forma colaborativa, incentivando feedbacks para realizar melhorias estruturais, por exemplo.
Em 2006, os pontos tecnológicos que definiam as cidades inteligentes tocavam questões como cobertura por infraestrutura de telecomunicações para, a partir disso, prover serviços à população. “Isso seria o básico”, comenta Marcos de Carvalho, diretor de tecnologias e serviços do CPqD, que se dedica ao estudo do tema. Ele viu a discussão evoluir e, com o tempo, ganhar novas bandeiras.
“Do que experimentei, o importante é que a cidade que se propõe a tratar essa transformação deve, primeiro, se entender, conhecer sua personalidade, necessidades e objetivos; envolver a população nesse processo e no planejamento de ações para, então, definir quais os instrumentos – seja infraestrutura, arquitetura, serviços ou processos de relacionamento – serão utilizados. Tendo isso em mãos, traduzir essas demandas em tecnologias que irão melhorar a vida e ação dos atores sociais”, contextualiza.
Há um grupo de ferramentas tecnológicas que pode contribuir para um ambiente urbano mais otimizado. Entram aí chips, redes de comunicação e sistemas de análise de dados. “Se tiver informações captadas por um sensor, processada em software e transmitida via internet, teremos um grande impacto na vida dos habitantes das cidades”, pontua Eduardo Moreira da Costa, diretor-geral do ÁgoraLab, um laboratório especializado em cidades inteligentes humanas.

Onde está a real oportunidade para esses projetos?
“A palavra-chave é especialização”, define Reinaldo Opice, vice-presidente da Enterasys na América Latina, observando que muitas cidades que querem ser mais inteligentes têm feito movimentos apoiados em parcerias entre órgãos públicos e empresas privadas (as famosas PPPs). “Há muita oportunidade para canais focados em infraestrutura, em análise de dados e para parceiros que operam essas soluções, uma vez que há tendência de colocar gestão desse tipo projeto na mão de empresas privadas para evitar qualquer conflito de interesses.”
A Enterasys participou do projeto Recife Digital, em funcionamento há algum tempo e que pode ser enquadrado no tema que estamos discutindo aqui. A capital pernambucana, a exemplo do que foi feito no Rio de Janeiro, criou um centro de comando e controle para solucionar problemas do mais variados, em especial, segurança. “O governo patrocinou a iniciativa, chamou empresas que montaram o centro, hoje operado por uma organização privada”.
Entre cinco e seis diferentes parceiros se envolveram nessa primeira fase. Isso vai desde grandes integradores até empresas de menor porte – mas com grande especialização. O projeto consumiu, nas palavras de Opice, “algumas centenas de milhares” de reais. Outra questão é foco para direcionar a oferta. Além disso, não se trata de algo restrito a um provedor. Há muita tecnologia envolvida e não existe um fornecedor de solução completa. Contudo, depois de provar os resultados e ganhos do investimento, os esforços ecoam. Por exemplo, o projeto do Recife será ampliado para uma iniciativa chamada Pernambuco Digital.
Oportunidades em três níveis
• Conectividade: quanto mais complexa for a necessidade e utilização da rede, maior o nível de qualificação dos que prestarão esses serviços.
• Serviço: mapear possibilidade de aplicar tecnologia em todas as frentes não atendidas com perfeição pelo atual modelo de gestão pública. Soluções que melhorem educação, saúde, transporte, segurança.
• Interação população X públicos: combinação entre sistemas de informação e de personalização em massa que podem tornar efetiva a comunicação dos governos com o cidadão, como cruzar bases de dados para avisar sobre campanhas, por exemplo.

Velhas barreiras
Fabio Tagnin, diretor de pesquisa da Intel, que possui um braço de capital que investe em ideias inovadoras, constata que faltam empresas focadas no desenvolvimento de ferramentas tecnológicas para esses segmentos distintos. “Há um vácuo na área de sistemas que precisa ser preenchido”, adiciona. O executivo traz outro tema à tona. “É difícil passar pelas diversas burocracias nos órgãos públicos para que eles avancem na adoção tecnológica. Às vezes, só se toma uma atitude quando existe um problema muito latente”, pondera.
“Para uma empresa se estabelecer nos órgãos públicos é necessário um relacionamento de um a quatro anos”, comenta Paul Markus, diretor comercial da Path, provedora de tecnologia que possui 50% de suas receitas originadas de negócios gerados no setor público. A companhia, por exemplo, tocou um projeto junto ao Disque Denúncia do Rio de Janeiro. A partir de aplicação de sistemas de análise de informações, gerou uma solução que reduziu um processo que levava 15 dias para alguns segundos. Dentre os ganhos da organização não-governamental (ONG), que axulia a polícia com informações, estão controle maior sobre tráfico de drogas e criminalidade.
TI deixou de ser um limitador. Com a evolução de conceitos como telefonia móvel, internet das coisas, análise de grandes volumes de dados, computação em nuvem; chega a chance de aplicar tecnologias para ajudar a resolver problemas e/ou usar essas ferramentas como maneira de mitigar muitos desses problemas. A transformação ocorre aos poucos e a tecnologia vem para ajudar a visualizar coisas que não percebemos. Isso vale tanto para grandes quanto pequenos fornecedores.
Diferentemente de uma oferta corporativa, a oportunidade para oferecer soluções para tornar uma cidade mais inteligente pode estar no caminho entre sua casa e o trabalho a partir da compreensão das lacunas do dia a dia. Como muita coisa no mundo da consumerização, a venda é feita não só para o governo, mas principalmente para as pessoas. Então metade do desafio está em provar para a população os benefícios de uma aplicação. Um desses casos são aplicações de trânsito Waze, comprada pelo Google por 1,1 bilhão de dólares em junho de 2013.
Outro conceito que permeia o tema é chamado Living Labs, um laboratório que avalia a viabilidade de determinada tecnologia em ambiente controlado. Isso porque o modelo de provimento de serviço e criação para cidades baseado em processo massificado não será suficiente. Dá para se pensar em um condomínio dessa forma? Talvez, afinal, hoje as demandas são as mesmas de um centro urbano, mas a escala é menor do que a vivida em uma cidade.

Faça as perguntas certas
Cada cidade tem um conjunto bem amplo dos seus problemas. Não existe uma solução completa ou um pacote para resolver tudo. Os processos que atendem ao cidadão cruzam diversas secretarias que hoje estão desconectadas. Portanto, é preciso uma visão mais horizontal para não tomar decisões desconexas ou desencontradas, pois a solução de um problema de trânsito (um semáforo que reduz acidentes) talvez gera outro problema de segurança (assaltos). Portanto, é preciso fazer as perguntas certas para achar as soluções corretas.
A insatisfação de parte da população brasileira em junho de 2013 deixou clara a mensagem de que alguns pontos precisarão ser resolvidos pelos órgãos públicos. A falta de um plano estratégico e independente do prazo de mandato de partido X ou Y muitas vezes é prejudicial. É preciso maturidade de olhar para frente de forma a tornar a cidade mais eficiente, algo que não necessariamente vai ser concluído dentro de uma gestão de quatro anos. “Não acontece de um dia para o outro em um salto quântico; e exige investimento”, diz Cezar Taurion, evangelista-chefe da IBM.
Pelas projeções de especialistas como os do MIT, negócios inteligentes só começarão a acontecer por aqui nos próximos dez anos, pois existe uma necessidade cultural de transformação da forma de fazer negócios e pensar em vendas.
“Você só muda se a situação que está é ruim demais, ou se a situação para onde se vai é boa demais. Não sabemos para onde estamos indo, mas sabemos onde estamos e a questão é basicamente insuportável”, diz Costa, do ÁgoraLab, que em diversos momentos de nossa conversa revelou a importância de um planejamento urbano focado nas pessoas. Precisaremos de maneiras de resolver problemas estruturais e a TI, até onde for possível, é uma ferramenta para otimizar e dar escala a iniciativas que tocam educação, saúde, segurança, mobilidade, infraestrutura logística. Para ele, não dá mais para caminhar em direção a um precipício fingindo que não estamos vendo. Durma com esse barulho.

Premissas para construir um ambiente inteligente*
Governos e empresas investem bastante dinheiro em soluções urbanas não tão inteligentes. A aplicação de pequenos recursos tecnológicos melhoraria o ambiente urbano. A seguir, uma lista de premissas para projetos de cidades inteligentes que tocam transporte, segurança pública, governança, desenvolvimento econômico e longevidade, comunidades, sustentabilidade, comunicação, acesso à informação e infraestrutura física.
1. Considere as pessoas antes do espaço urbano; considere o espaço urbano antes da tecnologia.

2. Demonstre sustentabilidade, escalabilidade, flexibilidade e resiliência dos projetos dentro do longo prazo.

3. Pense na construção de novas estruturas considerando espaço suficiente para evoluções tecnológicas (inesperadas) futuras. Leve em conta o fácil acesso para caso de suporte.

4. Todo desenvolvimento deve considerar soluções cabeadas e sem fio.

5. Pense padrões abertos ou a possibilidade de monetização de serviços. Considere a possibilidade de acordos legais e comerciais para exploração de serviços no futuro.

6. Jamais descarte a interoperabilidade entre protocolos, sistemas e padrões.

7. Privilegie elementos de sustentabilidade ambiental, fontes renováveis de energia limpa e mecanismos para redução no consumo de recursos.

8. Elaboração de planos devem prever contato efetivo com a comunidade para contribuir para o desenvolvimento do projeto. Gestores de companhias, autoridades locais e desenvolvedores deveriam ter um engajamento genuíno em mídias sociais, o que permitiria uma aproximação informal.

9. Suporte e valorize iniciativas e empreendedores locais. Espaços devem incorporar conceitos como trabalho móvel e a distância, conectividade para suporte e sistemas de telemedicina. Esses ambientes poderiam ser capazes de oferecer recursos avançados para trabalho remoto, além de espaços de trabalho colaborativo.

10. Qualquer sistema de informação no desenvolvimento da cidade deveria prover uma política clara para uso de informações pessoais. Qualquer uso de informação pessoal deveria passar por consentimento individual.

11. Plano de suporte de transporte em novos empreendimentos deveria demonstrar que eles não estão focados apenas nas demandas tradicionais de tráfego, mas considerar a criação de modelos de negócio online e outras tecnologias sociais.

12. Novos empreendimentos deveriam demonstrar que seus designs levam em conta o que há de mais recente e emergente praticas e padrões em cidades e urbanismo inteligentes.

*Fonte: extraído e adaptado de theurbantechnologis.com
Colaborou: Renato Galisteu | Mediação do Debate: Adriele Marchesini